Música na Corte do Brasil



Os projetos de transferência da Corte somente se concretizaram no período em que as incursões napoleônicas ameaçaram o Estado de Portugal e a continuidade da casa de Bragança. Nos inícios do século XIX, diante do medo e das ameaças que levariam à perda do poder e de partes do território Na página ao lado: Henrique Bernardelli.
José Maurício tocando para D. JoãoVI. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL português, as opiniões sobre a retirada da Família Real e dos cortesãos para o Brasil não foram unânimes. Para alguns se tratava de uma traição; para outros, estratégia. Podia ser, em outras palavras, tanto o abandono do povo e do trono, como o único recurso capaz de manter a casa monárquica, tendo em vista as ameaças de Napoleão. O marquês de Alorna já havia alertado, paradoxalmente, à Corte portuguesa para os perigos de permanência da Corte em Portugal, na iminência do ataque francês, e para os benefícios que 33 essa mesma retirada estratégica poderia gerar. Para o marquês de Alorna, foi estratégica e importante a vinda de D. João VI e da Família Real para o Brasil, porque daqui, como um imperador em um vasto território, os domínios poderiam expandir-se e o monarca poderia conquistar facilmente “as colônias espanholas e aterrar em pouco tempo as de todas as potências da Europa”1. As recomendações do marquês de Alorna não foram novidades nos inícios do século XIX em Portugal. Não foi também a primeira vez que os franceses incomodaram a monarquia portuguesa, e muito menos era nova a aliança com os ingleses. Desde os tempos de D. João III, depois nos reinados de D. João IV e de D. Luíza de Gusmão, a monarquia já admitia um projeto de se instalar fora das mediações de Portugal e se estabelecer em algum lugar do ultramar. Ou porque temia as interferências dos estrangeiros – como no caso dos franceses na primeira metade do século XVII e na derradeira expansão napoleônica nos inícios do século XIX, ou porque realmente confiavam no potencial econômico do Brasil, a Corte portuguesa pretendeu, durante quatro séculos, retirar-se de Portugal2. Se pensarmos como pensou o marquês de Alorna, a emotividade com que a carta foi escrita e a estratégia que ela propunha, a retirada da Família Real para o Brasil era necessária havia muito tempo e inevitável, diante as ameaças de Junot. Não bastava somente uma retirada nem as lembranças de uma terra promissora, que por direito de conquista deveria acolher o príncipe e sua família. Foi preciso ainda reforçar, nesse caso como um atrativo para a retirada, as dimensões da colônia e a possibilidade da conquista de territórios vizinhos.

Como estratégia política ou como reação que previa a expansão francesa, o príncipe regente, sua mãe debilitada, a princesa Carlota Joaquina e seus filhos, vieram para o Brasil e aqui se estabeleceram por 13 anos, com seus costumes e suas práticas. A primeira mudança foi acolher um número estimado de reinóis entre 10.000 e 15.000 indivíduos; a segunda, já no plano das perdas e da autoridade, começou nos despejos. Para toda população que tinha uma das residências “das mais excelentes”, ou pelo menos habitável, estaria sujeita, mais por obrigação que por espontaneidade, a ceder sua residência aos portugueses. As autoridades coloniais mandaram marcar nessas casas as iniciais P. R. impressas nas portas das casas; seriam para uns, “Príncipe Regente”, para outros, “Ponha-se na Rua”3. Com a instalação da Corte e com as medidas tomadas por D. João, as relações com os estrangeiros foram mais abrangentes. Spix e Martius mostram que vários países vendiam produtos para o Brasil: da Inglaterra vinham algodão, chitas, panos finos, porcelana e cerveja; de Gibraltar, vinhos espanhóis; da França, artigos de luxo, jóias, móveis, licores finos, pinturas e gravuras; da Holanda, cerveja, objetos de vidro e tecidos de linho; da Áustria, relógios, pianos e espingardas; e vários outros produtos da Alemanha, Rússia, Suécia, Estados Unidos, Guiné, Moçambique, Angola e Bengala4. O produto interno, a manufatura e a indústria, que ainda começavam a crescer no Brasil, não eram competitivos, nem em termos de gosto nem em termos de tecnologia da civilização, com os da Europa. Os hábitos estrangeiros foram, dessa forma, assimilados pelos cariocas, seja pela observação do outro, seja pela imitação de seu comportamento.

Durante todo o período joanino, houve no Rio de Janeiro uma intensa atividade musical, distribuída basicamente em dois setores, o da Corte, onde a qualidade era imprescindível, e o de fora da Corte, em que a funcionalidade era festiva e mítica. É importante pensar nisto, numa complexidade que surge no momento em que negros e mestiços são Os músicos diletantes ou amadores dividiam-se entre os negros e mestiços, com seus lundus, modinhas e batuques, e brancos pobres que normalmente tinham uma outra ocupação, que lhes assegurava o sustento.

Chamados para tocar em festas religiosas, muitas vezes com seus instrumentos típicos e com suas próprias interpretações. Arregimentar músicos, pintores e outros artífices para algum trabalho ou para abrilhantar alguma festa em caráter de urgência foi uma medida comum nos tempos de D. João VI. Na verdade era necessário atender um desejo de manter a pompa, a ostentação e a visibilidade de um gosto; mas para isso era necessário que houvesse mão-de-obra suficiente. Muitas vezes não era possível. Em algumas situações, criava-se, literalmente, o artífice e artesão, normalmente uma maioria de negros, mestiços e brancos pobres, cujo desejo e habilidade eram formulados pela ordem e obediência. Em algumas circunstâncias, para atender à demanda musical, ou de outra atividade artesanal, o que valia era o poder de um sobre o outro. O caso dos músicos pobres, dos diletantes que estavam à mercê dessas relações de poder, não foi diferente. Robert Southey chega a falar de “devotos músicos” que eram chamados para as festas das igrejas “muitas vezes por água”5 . Os músicos diletantes ou amadores dividiam-se entre os negros e mestiços, com seus lundus, modinhas e batuques, e brancos pobres que normalmente tinham uma outra ocupação, que lhes assegurava o sustento. Entre esses diletantes, encontrava-se ainda alguns professores, mecânicos e “barbeiros-cirurgiões”.

No Rio de Janeiro já existia uma vida musical significativa para aqueles tempos históricos, com compositores ativos e importantes, como Lobo de Mesquita, que saiu de Minas e foi para o Rio, morto em 1806; José Maurício Nunes Garcia, mestre-de- capela, compositor e organista que se tornou uma das maiores expressões da História da Música no Brasil, e Gabriel Fernandes da Trindade, violinista e compositor, um dos mais prolíficos instrumentistas da Colônia e do Brasil Reino. Além desses ilustres, tem-se ainda o vasto universo dos anônimos. A vinda da Família Real para o Brasil, juntamente com alguns dos compositores e intérpretes portugueses que serviram a Corte em Portugal, influenciou o estilo e as práticas desses músicos coloniais, “construindo” uma nova percepção do gosto e uma nova maneira de observar o mundo das artes. O surgimento de instituições de corte, como a Capela e Câmara Reais, favoreceu a expansão da atividade musical, criou mais Neukomm, Sigismund. Retrato de autoria de Ary Scheffer.

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Oportunidades de trabalho e redefiniu a hierarquia entre os músicos. As famílias aristocráticas que vieram com D. João VI, ou que aqui se aproximaram dele, contribuíram com seus comportamentos e hábitos de ouvir música em saraus e reuniões sociais. Em tudo isso pode-se somar ainda a circulação de viajantes e negociantes estrangeiros, a freqüência e a pompa que as festividades adquiriram e, sobretudo, a construção do Real Teatro de São João, palco ideal para as representações dramáticas. Se os homens vão e vêm, com eles circulam também as idéias.
A circulação de músicos estrangeiros no Rio de Janeiro joanino foi importante para o estabelecimento de uma prática de corte, para sustentar a demanda de música e, sobretudo, ajudar a construir um novo gosto, baseado em práticas cortesãs. A vinda dos cantores castrados, o serviço prestado por Marcos Portugal e em seguida a vinda de Neukomm foram acontecimentos importantes que transformaram a idéia da criação e da recepção musical. Todas essas mudanças ocorridas nos níveis sociais, culturais, administrativos e, sobretudo, mentais, criaram um outro espaço e uma outra forma de audiência das obras no período joanino. Classicismo e italianismo vieram, respectivamente, com Sigismund Neukomm e Marcos Portugal. O que aconteceu nesse período em que a Família Real esteve no Brasil foi exatamente uma articulação desses estilos. Se a música vocal se firmou no virtuosismo italiano, a música instrumental se baseou nos modelos do classicismo vienense. As relações da Casa de Bragança com as cortes da Europa, sobretudo com a Casa da Áustria, se reforçavam cada vez mais, através de questões políticas e conveniências matrimoniais. Acontecimentos como a vinda da Missão Artística em 1816 e o casamento da arquiduquesa D. Leopoldina com D. Pedro I aproximavam os portugueses dos costumes e hábitos europeus.
O que aqui denominamos por “classicismo” conviveu com o “italianismo” e com o “colonialismo”. Um se refere à estilística tipicamente germânica e austríaca; outro, como diz o próprio termo que o define, a uma maneira de dramatizar e interpretar em termos de técnica desenvolvida na Itália e, por fim, uma situação político-administrativa, o “colonialismo” português no Brasil do tempo de D. João VI. Esse último termo tem significado histórico e prático. Na verdade, pode-se sugerir a intensa e larga dependência do Brasil com Portugal. Mesmo depois da instalação da Corte, da elevação a Reino Unido, da coroação do Príncipe Regente, a situação dos trópicos não mudou muito nas suas relações externas. Classicismo, com Haydn (através das relações Brasil-Áustria e a vinda de Neukomm), Mozart e Beethoven e o italianismo operístico, com as obras de Piccini, Cimarosa, David Perez, Salieri, Scarlatti, Rossini e a transferência de Marcos Portugal, estiveram na colônia, absorvidos por José Maurício. Essas relações são importantes para a compreensão de uma estilística resultante de práticas coloniais, de um novo gosto, que foi mantido com a Família Real no Rio de Janeiro e aos poucos foi sendo construído no Brasil. O gosto pela ópera clássica era cultivado pela Família Real portuguesa, sobretudo pelo Príncipe Regente e depois rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, D. João VI. A ópera italiana do final do século XVIII e da primeira metade do século seguinte reservava o caráter virtuosístico predominantemente aos cantores castratti. Como uma extensão desse gosto, D. João VI incentivou a vinda desses cantores para a colônia, transportando, da melhor maneira possível, o cenário da prática musical da Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro.

A circulação de músicos estrangeiros no Rio de Janeiro joanino foi importante para o estabelecimento de uma prática de corte, para sustentar a demanda de música e, sobretudo, ajudar a construir um novo gosto, baseado em práticas cortesãs.

Jean-Baptiste Debret. Vista interior da Capela Real, desenhada do degrau superior do altar-mor, olhando para o lado da entrada da Igreja. A orquestra de músicos ocupa toda a parte superior do fundo. Do livro Voyage Pittoresque et Historique au Brésil.

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A imaginação individual era canalizada estritamente de acordo com o gosto dos patronos.

No Brasil Colonial, a religião, através das irmandades, e por vezes o poder político, através dos Senados e das Câmaras, ou de seus representantes mais ilustres, ditavam o gosto. Era preciso que o compositor tivesse como princípio a funcionalidade da sua obra e a devida correspondência com os aspectos morais e espirituais permitidos ou em uso no seu espaço social. A situação social do músico e a conseqüente estilística tomaram,
a partir dos fins do século XVIII, um outro caminho: o interesse da coletividade cedeu lugar ao indivíduo e o fim paulatino do anonimato consagrou a estética e o artista, agora com nome, endereço e personalidade. Na Áustria, Haydn passou quase a vida toda a serviço de príncipes, Mozart enfrentou-os e conquistou sua liberdade; Beethoven, aceito pela aristocracia, fez com que os príncipes admirassem sua arte; Neukomm desapontou a todos, aristocráticos e burgueses, e, embora tivesse a proteção de Charles Maurice de Talleyrand, preferiu uma vida mais ou menos nômade.

No Brasil joanino, ser músico da Corte ainda era uma situação favorável, por três motivos básicos: melhores oportunidades de mostrar sua arte, de tomar contato com músicos estrangeiros e linguagens modernas e, por fim, de garantir um status social e financeiro em parte suficiente para viver em colônias.

A música praticada fora do círculo cortesão foi tão multifacetada quanto a própria sociedade; e, ainda mais, pode-se dizer que foi uma mistura de tradição e novidade. Costumes e práticas de várias culturas conviveram no Brasil joanino. Negros e índios compartilharam, de uma forma ou de outra, da cultura do branco, imitaram-na, transformaram-na e, em alguns momentos, procuram até se afastar dela. Nos tempos de D. Maria I e D. João, como foi em toda a vida colonial, os europeus tiveram de articular seus costumes e hábitos com práticas autóctones ou que aqui se estabeleceram. Europeus eram dominadores, donos de colônias, e por isso mesmo tiveram um sentimento de cultura superior, de força e de retórica. Seu modo de ver o mundo era melhor de que todos os outros, seu Deus era uno, trino e onipotente, e também por isso, mais verdadeiro que os dos outros. Entretanto, tratamos aqui de formas culturais, cada uma com sua força e tradição, mas que, sustentada por indivíduos diferentes, entrecruzavam-se todas. Nesse sentido, seria oportuno pensar em um mundo apolíneo nos domínios de Dionísio, e que é nada mais que uma cultura escrita, normatizada, programada e cheia de sanções morais em um ambiente onde ela era mais espontânea.

As concepções de Nietzsche sobre os mitos de Apolo e Dionísio podem se tornar úteis para introduzir temas de culturas variadas nesses espaços comuns6. Numa outra dimensão da idéia que caracteriza os personagens, a música de Apolo é européia, encontra-se cultivada fora das camadas populares, levada para o ultramar como pressuposto de modernidade e civilização, como um dispositivo importante de uma cultura que cristianizou e sustentou o absolutismo de reis, príncipes e cortes. A música de Dionisio é indígena, africana ou afro-ameríndia; encontra-se nas manifestações das culturas de tradição oral. No Brasil colonial, Apolo e Dionísio se entrecruzaram entre lundus, modinhas, batuques, práticas de feitiçarias, alegorias e Te Deuns.

Entretanto, em alguns momentos da vida social da colônia, as ruas, praças, templos religiosos e, por algumas vezes, os estabelecimentos de espetáculos se tornavam espaços comuns. Neles, os vários estamentos e grupos étnicos se reuniram para comemorar alguma data ou reverenciar algum nobre ou príncipe e, de forma estratégica, esses encontros de todos serviram, mesmo que momentaneamente, para atenuar as diferenças sociais. Tudo que não estava na Corte, que não estava sujeito às regras de etiqueta e civilidade, que não seguia determinadas normas de tocar, cantar, compor e dançar, estava, conseqüentemente, sujeito a ponderações muitas vezes preconceituosas.

Ao contrário das práticas de corte, as manifestações de características populares ou étnicas, como aquelas encontradas entre os brancos pobres, africanos e indígenas, estiveram sujeitas a um outro tipo de determinismo: a espontaneidade. Essas práticas, no caso de indígenas e africanos, estavam atreladas a cultos de deidades negras e a rituais animistas.

A dos brancos pobres, os excluídos do processo de corte, estavam sujeitas àquilo que chamamos aqui de uma ‘articulação’ de culturas; pode-se dizer que elas absorveram elementos de todas as outras, em menor escala, dos indígenas. Os negros também absorveram, através do catolicismo, formas miscigenadas das práticas européias e deram uma outra roupagem às suas tradições; preservaram-nas, fizeram com que elas sobrevivessem numa corte pitoresca que procurava se impor7.

Tudo isso era um espetáculo, uma mistura de catolicismo com atividades autóctones, própria de negros, índios e mestiços. Um espetáculo à parte daquilo que acontecia na Corte, ou dentro dos templos, nos teatros ou nas casas mais abastadas. Tinha tanto de sincrético quanto de propriedade. A palavra sincretismo vem designar não a simples e inevitável mistura, ou absorção de uma cultura pela outra, como uma forma em que as culturas não européias deveriam aceitar a cultura do outro. Em propostas mais abrangentes, sincretismo significa aqui uma maneira de preservar a própria cultura.

DISCOGRAFIA
O MÉTODO DE PIANOFORTE DO PADRE JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA. Rio de Janeiro, UNIRIO, 1998, CD 002. Ruth Serrão (piano)
MODINHAS DE JOAQUIM MANOEL DA CÂMARA E SIGSMUND NEUKOMM Rio de Janeiro, 1998, Independente. Pedro Persone (fortepiano). Luiza Sawaya (canto)
GABRIEL FERNANDES DA TRINDADE: DUETOS CONCERTANTES
São Paulo, PAULUS, 1995, CD 11100-7. Maria Ester Brandão e Koiti Watanabe (violinos)
MÚSICA PORTUGUESA E BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII PARA CRAVO Rio de Janeiro, Brascan, 1990. Marcelo Fagerlande (cravo)
MATINAS DE FINADOS. JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA
Rio de janeiro, Funarte, 1980, CD 07.Associação de Canto Coral. Direção: Cleofe Person de Matos
MISSA DE SANTA CECILIA. JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA
Rio de Janeiro, Funarte, 1980. Associação de Canto Coral Orquestra Sinfônica Brasileira
Direção: Edoardo de Guarnieri. 2v
VENENO DE AGRADAR. MODINHAS
Lisboa, 1998, CD LS-9801. Luiza Sawaya (canto) Achille Picchi (piano)

MUSICA BARROCA BRASILEIRA
Caracas, Centro de Estudios Brasileños, 1992, CD 2.72.0440 Camerata Barroca de Caracas. Direção Isabel Palacios interferências e das imposições das culturas européias. Nessa forma de observar o sincretismo, os negros, sobretudo, preservaram, da maneira possível, suas raízes e a absorção inevitável da cultura do branco se tornou um matiz para a preservação de sua própria cultura. Numa sociedade escravista e preconceituosa em tudo, esse sincretismo era a única forma possível de preservar o que é seu sem cair nas malhas da vigilância e das sanções do Estado e da Igreja. Foram nos círculos populares, nas casas, nas senzalas, nas tribos e nas regiões rurais que as manifestações se tornaram mais autênticas que nas cidades, que nas áreas onde a vigilância obrigava demonstrações da cultura européia. Preservar a cultura afro-americana ou indígena, assim como impor por meios diversos a cultura européia, era uma articulação viável que, ao mesmo tempo, preservava uma e absorvia outra. Surgem dois territórios onde as formas de cultura se contracenam: um público e outro privado.
Fez-se a festa. Falou-se alto. A vida fora da Corte vinha de uma observação que era inversa à de um mundo proposto em um mundo diferente. Em toda essa sociedade, sobretudo nas vilas e cidades litorâneas onde as trocas com elementos externos aconteciam primeiro, era de se esperar que existissem formas de convivência. Em outras palavras, pode-se dizer que existiram momentos em que as diversas formas 1. “…É preciso que Vossa Alteza mande armar com toda pressa os seus navios de guerra e de todos os de transporte que se acharem na praça de Lisboa, que meta neles a princesa, seus filhos e os seus tesouros(…), podemos cobrir a retirada de Vossa Alteza e a nação portuguesa sempre ficará sendo nação portuguesa. (…) Porque ainda que essas cinco províncias padeçam algum tempo debaixo do jugo estrangeiro, Vossa Alteza poderá criar tal poder que lhe seja fácil resgatá- las, mandando aqui um socorro, que junto ao amor nacional as liberte e de todo. Dizem que é mal visto todo homem que aconselha tudo isto a Vossa Alteza”.

Carta do Marquês de Alorna a D. João VI. 30 de maio de 1801. Cf.: NORTON, Luis. A Corte de Portugal no Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1938, p. 54.

2. Cf.: MATOSO, Antonio G. História de Portugal. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1939, p. 439.

de culturas – as autóctones, as européias e africanas – manifestaram-se isoladamente, e em outras oportunidades fundiram-se numa só, permitindo a existência de vários elementos se entrecruzando. Essas ocasiões poderiam acontecer em espaços originais, na sua própria origem, como no caso dos índios, ou podiam ser ainda preparadas para o formato dos rituais, do entretenimento ou da demonstração de poder. Se na igreja ouvia-se os Te Deuns, nas ruas, ao lado da imagem da santa, tocava-se gaitas típicas, flautas e tambores. Fora das festas de caráter cristão, existiu a convivência com negros que andavam pelas ruas tocando suas calimbas e berimbaus.

Os índios, talvez por estarem menos expostos à cultura urbana, participaram em menor escala desse processo de troca. Eles apareceram menos nas cidades e sumiram mais rapidamente do litoral. Mas é possível também imaginar os índios descritos pelo príncipe Maximiliano Wied-Neuwied dançando lundus ou batuques, ou o índio que era padre e fugiu nu pela floresta. De qualquer forma, o Brasil, e mais particularmente o Rio de Janeiro, se tornou uma sociedade que tinha pajés, reis do congo, D. Maria I e D. João VI; transformou-se em um espaço de ritos, onde deuses de várias naturezas disputavam as almas tropicais. Criou-se um círculo de articulações e um espaço de tolerâncias.

ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do império. Porto: Edições Afrontamento, 1993, p. 837.
3. Cf.: LIMA, Manoel de Oliveira. D. João VI o Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, p. 790.
4. Cf.: SPIX, J.B. & MARTIUS, C.F.P. Viagem pelo Brasil. 3 v. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981, p. 67.
5. Cf.: SOUTHEY, Robert. História do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981, p. 435.
6. Cf.: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A origem da tragédia. Tradução: Álvaro Ribeiro. Lisboa: Guimarães Editores, 1958, p. 179 p. As concepções aqui são tomadas em relação ao que é europeu e não europeu. Apolo é europeu, Dionísio
é africano e indígena, e em certa medida, colonial.
7. Cf.: KLEIN, Herbert S. A Escravidão Africana – América Latina e Caribe. São Paulo: Brasiliense, 1987.
MAURÍCIO MONTEIRO
Prof. Dr. em História pela USP, leciona na Universidade Anhembi-Morumbi e membro do Conselho Curador da Fundação Pe. Anchieta.

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